O Livro!


Aquela manhã estava a ser igual a qualquer outra. Zé encontrava-se em casa, sem nada para

fazer, esperava o toque da campainha e as noticias do carteiro, nunca mais chegava a carta do tribunal. A telefonia que tinha comprado na loja chinesa do outro lado da rua noticiava, da

sua forma roufenha, o recuperar freguesias extintas, o downsizing de empresas e serviços do estado, a perda

de reformas escabrosas e de vez em quando, passava músicas que recordavam tempos melhores, tempos de vacas gordas, em que a República se endividava e fazia faustosas festas para assinalar feriados que hoje em dia, já não existiam.

Zé olhava em volta, para a sua casa de renda baixa, acanhada e destituída de luxos limpa por amor pela Albertina, mulher a dias de uma casa faustosa, limpava por amor, passava lá uma vez por semana.

Albertina, com 65 anos, já não esperava nada da vida, só temia morrer numa valeta e ninguém dar por isso, vingava-se furiosamente nos tachos e panelas, areava até à exaustão.


Menino Zé, não se preocupe o país vai melhorar, nem que caia dos céus um novo Salazar para meter a ordem nisto!

Albertina trabalhava lá, por amor, não amor carnal, Zé tinha-lhe dado trabalho anos a fio, como era mulher de bom coração não se importava de ajudar aquele que a tinha ajudado tantas vezes na vida!

Sonhava de olhos abertos, prostrado a um canto, fosse onde fosse, com a vida que já tinha tido, com carros rápidos e mulheres bonitas, cocktails em casinos e jogos de póquer com apostas altas. Só nestas alturas se vislumbrava um ligeiro sorriso, depois tudo isso se desmoronava.

Menino Zé, volte à terra! Estou a falar consigo! Raios partam aquela sua ex-mulher! Deixou-o neste estado! Não se admite! Enquanto o dinheiro entrava em casa, aos maços, ela por cá ficava! Bem lhe disse menino Zé, eu avisei-o, não passava de uma interesseira! Velhaca!

Quanto acordou das suas divagações, deu conta que a mini que tinha na ponta dos dedos, jazia, morta, finada, até o rótulo se desfazia com tanta a força com que a apertava!

Menino Zé, já lhe disse para não ranger os dentes, vai acabar desdentado! A voz da Albertina tanto aparecia como desaparecia por detrás dos seus pensamentos, aquela mini, morta, órfã, tinha sido comprada no mercearia de bairro, ao lado, em cima da mesa, no maço de SG Ventil amarfanhado, já só se contava 2 cigarros.

Albertina, já só tenho pena de não ter pena de nada!

Acima de tudo, já nada preocupava o Zé, excepto a carta da senhoria, que dizia que não pagava a renda hà três meses, que o iria por na rua! Não tinha televisão. A ex-mulher tinha ficado com a que tinha, mas para ouvir desgraças e ver telenovelas, como a ex-mulher tanto gostava de fazer, mais valia não ter.

Quando queria ver o que se passava pela tapa olhos, era assim que o Zé lhe chamava, passava pela tasca ou pelo café Amarelinho, pequeno café de bairro, de uma brasileira enxuta mas de nádegas proeminentes!

Zé, quando foi transferido do SIS, devido a uma reestruturação Interna, e a uma valente trapalhada do diretor da secção em que trabalhava, não tinha tido direito a para-quedas dourado, a uma reforma em condições. Nem direito teve a furtar uns clipes do escritório, pois tinha sido transferido para coveiro, sem contemplações, sem apelo nem agravo, em nome da racionalização de recursos. Apresentou-se ao serviço para entregar o relatório da ultima missão, e verificou que o numero de código tinha sido tirado do placar dos agentes no activo.

Ficara completamente de rastos, dera a vida pela pátria por mais de 25 anos, e de um dia para o outro virara coveiro.

Falava com os seus botões, e tentava mentir a si próprio, dizia para si mesmo Zé afinal era trabalho e o ordenado era o mesmo. E tinha a hipótese de estar mais perto de casa. Depois lembrava-se dos chorudos extras que ganhava por missão, e voltava a ranger os dentes!

Um dia ao ler o jornal mandou um salto!

Sexagenário milionário dono da Cadeia Hipermercados Dumbo aparece morto em casa!


Raios isto seria um caso para eu investigar! De certeza que a PJ não apanhou nada!


Aposto que foi o sogro que o mandou matar!

Nessa noite o corpo dera entrada no cemitério da luz! No dia seguinte seria a cremação!

Malditos vão querer esconder as evidências! Não posso deixar que isso aconteça! Enquanto a viúva chorosa saiu com o resto da família para jantar resolveu meter mãos à obra!

Luvas! Tenho luvas no carro, tenho de ir buscar as luvas, não posso deixar marcas! Raios! Como vou verificar isto?

Algo de estranho se passara!

Zé nunca fora com a cara do Sogro do franzino magnata! Uma vez apanhara-o no meio do Zimbábue a sair de um Teco-teco com duas malas!

Mas ele já estava de partida, terminara a missão e o avião fechado e prestes para descolar! Terminara uma missão de alto risco, secreta, e não podia por em risco o seu disfarce. Habituado pela formação que recebeu, conseguia ver só de olhar para a cara se uma pessoa era culpada!

Fechou o Ibiza velho a cair de podre, e voltou a correr, chuviscava, pequenas gotas escorriam-lhe pelas cara. Entrou na sala retirou o corpo do caixão e arfando com o peso do corpo mesmo franzino, poisou-o na marquesa de preparação de corpos! A luz esverdeada dava ao corpo um aspecto nojento, no peito tinha uma cicatriz em “T” que ia desde o peito até ao umbigo! Agarrou num canivete suíço e tirou a pinça abriu a lupa e começou a verificar os dedos do morto. Raios que é isto? Debaixo das unhas encontrara um bocadinho de pele enrolada e os pulsos estavam mais escuros que deviam estar!

Aqui hà gato! Malditos gatos, malditos sejam os gatos! Em segundos abriu a lâmina do canivete e começou a soltar os pontos.

Meu Deus que é isto? Dentro da barriga encontrava-se um saco de plástico, e dentro do saco de plástico papeis, um rolo documentos, tirou-os do saco e guardou-os na ventilação da sala, de repente ouve-se passos e de repente estalou a confusão!

O Zé estava com as mãos cobertas de Sangue e com a bata do normal funcionário da sala coberta de sangue!

Parecia um verdadeiro talhante! Os berros foram tantos que o segurança acordou! O zé tentou fugir mas o chão estava molhado pela chuva, escorregou e caiu! Quando voltou a si, com o som das sirenes da polícia, já não tinha salvação, 5 polícias entraram pela sala e algemaram o Zé! Tinha sido preso! Os polícias param o carro na fabrica de bolos do Chile e seguem caminho! Pelo peito jaziam migalhas de pastel de nata e respiravam um bafo de pastel de nata e chouriço e vinho tinto para cima do Zé!

Com que então a violar um cadáver, hem? Não tem mais nada para fazer? Não acha que não temos mais nada para fazer?

Fui agente do SIS! Liguem para o meu chefe e ele confirma-lhes?

E? Que direito isso lhe dá para abrir corpos? Também é médico legista? Agente Martins tire-lhe a carteira!

O Zé tinha-se esquecido da carteira no carro! Não tinha um único documento com ele!

Ainda coberto de sangue atiraram-no para uma cela! Fique aqui quietinho que já voltamos!

Ainda na cela, enquanto aguardava para ser interrogado, O odor fazia-o lembrar o quarto de detenção na Casa Pia. As paredes, verde velho, em tinta de óleo. Um só banco feito de madeira, ao estilo Estado Novo, igual a tantos outros do Hospital Santa Maria ou da Maternidade Alfredo da Costa. O odor, esse sim não lhe saía da cabeça. A humidade era quase insuportável. Teve um arrepio na espinha. Os sapatos chiavam ao pisar aquele chão gélido. Quase fazia lembrar um filme de terror. Quanto tempo passaria naquele lugar?

Ainda atordoado, Zé vê um dos polícias que surge ao fundo do corredor. A porta da cela é aberta e é levado para uma sala de interrogatórios.

O policia dá inicio ao interrogatório num tom arrogante:

- O que faz um ex-agente do SIS, desempregado a basculhar cadáberes? Pergunta, com o seu sotaque do norte.

- Fui despromovido. Neste momento faço serviço de coveiro. Responde Zé ainda meio tonto devido à queda.

- E o que o leba a abrir um cadáber que está para ser cremado!? O coitado já foi autopsiado! Não precisa de o ser outra bez, carago!

- Tenho fortes indícios que me levam a acreditar que esse senhor foi assassinado.

- Mas isso não lhe dá o direito de abrir o cadáber! Que é que o leba a crer que ele foi assassinado?

- Já reparou nas mãos do cadáver? Já olhou para os pulsos? Existem marcas de violência!

Após meia hora de interrogatório e uma vez que teria mesmo de se apresentar na Policia Judiciária, Zé é libertado com termo de identidade e residência.

Todos estes pensamentos faziam a cabeça do Zé um autêntico nó. Tão depressa ouvia a sua empregada como deixava de a ouvir. Esquecera-se completamente que tinha provas na sua posse. No dia seguinte de manhã recebera um telefonema do director do cemitério que fizera questão em ligar-lhe para o despedir
 
O Estado não se comoveu e lá ficou Zé desempregado de novo. Ao fim de mais de 18 anos de bons serviços prestados ao SIS ficara de novo na rua. A sua vida de trabalho passara por muitos empregos e trabalhos todos diferentes, todos iguais, apenas num tivera a única coisa que lhe faltou nos outros! Mesmo sendo uma policia o SIS dera-lhe a liberdade de ação! Ainda muito novo o Zé fugira da casa pia, e por sorte ou azar ficou afeiçoado a uma mulher da vida! Maria gostava do zé via nele um filho crescido no mar de tantos mortos! Nunca deixara nenhum ver a luz do dia! Aquela vida não se coadunava com filhos e ainda que desse jeito seria completamente incapaz de dar de mamar a um cliente! Logo aquele era para ela um filho perfeito! Na pensão do intendente, primeiro acharam estranho, a matrona nem queria saber! Teria de pagar meia pensão! Aos poucos deixou de ser filho de maria para passar a ser filho de todas! O filho que nunca tiveram! A partir desse dia o Zé encontrou a felicidade que nunca tinha tido, esquecera as vergastadas esquecera os maus tratos de colegas. O único homem que não esquecera foi mesmo o diretor, Aurélio Offley, Tratava-o com respeito e amor enquanto se portava bem, mas um dia repreende-o por algo que não tinha feito, nos dias frios ainda sentia dor do lado esquerdo do maxilar por onde Aurélio o tinha agarrado e atirado contra a parede por cima da cama do quarto de detenção. A dor fora lancinante, Zé sentira a carne a rasgar. A dor foi tanta que ficou a chorar baixinho encostado á parede fria, o maxilar inchado, doía menos com a humidade que escorria pela parede. Aos poucos adormecera, a dor acalmou, conforme os minutos e as horas passavam ao som longínquo de um relógio de pêndulo.
Não sei como é que o Zé fugira da casa pia, nem como viveu os 2 meses seguintes, o que é certo, é que fora o frio e a fome que o levara para aquela casa de trabalhos difíceis.

Na verdade foi o amor de Maria, fora o medo de se calhar não poder ter nunca na vida mais filhos, quiçá não conseguiu deixar mais um no fundo de um vão de escada! Aquele seu novo filho seria homem e um dia alguém! Um dia um cliente vê o Zé! Cliente madrugador, gostava de se exercitar matinalmente,4 vezes por mês levava o pequeno almoço as meninas do seu aconchego, naquele dia vira o impossível, uma criança, Super Intendente geral da policia, não parou enquanto não descobriu que criança era aquela! Mas de repente ficou de mãos atadas! Ninguém queria deixar o Zé sair! E já fazia um ano que o zé não sabia o que era escola! 

Um olhar fulgurante da meretriz, fez tremer o Super, afinal de contas era casado e de boas famílias e 3 filhos! Excomungado não seria, porque até o pároco da igreja era visitante em alturas de menor controlo carnal! Da mulher pouco se importava, era fria e controladora pior que ele mesmo, mas os filhos amava. Ficar sem ver os filhos, para ele era algo inimaginável.

Mesmo do telefone da casa alegre, telefonara para o director do registo civil lisboa e para o director do serviço de identificação, reunião urgente para aquele dia! Almoço no império. Com medo do escândalo todos aceitaram a trapaça, todos tinham na cabeça o escândalo que fora o Ballet Rose, ninguém queria um ballet para eles, seria uma tragédia em 3 actos! Entre os 3 dividiram-se e enfiaram num numero de BI de uma criança morta, o nome do Zé, Zé ficou, Maria da Mãe e Integro de todos, José Maria Integro. Foi com este nome que o Zé foi Baptizado. José Maria Integro, e fora com este nome que entrou para o quinto ano! 9 mulheres educaram um rapazinho e com muita tropelia virou homem. Useiro e vezeiro nas lides do amor, sedento de adrenalina. Fazia as suas tropelias longe de casa, e tentava não ser apanhado! 

Roubava carros só pelo prazer da diferença, adorava conduzir depressa, passava a vida nas apostas, a marginal, era dele, quanto mais rápido melhor! Quanto mais borracha deixasse no alcatrão melhor! Tinha cartão desde a Frolic até ao Black Tie. Um dia Os copos já eram muitos e correu com o carro errado contra o filho mimado da pessoa errada. Esse mimado voou na curva da morte, e não foi a dançar que terminou a vida, morreu do outro lado da marginal, na rebentação de uma noite agitada.
Nesse dia, foi dia dos 3 pais do Zé o irem tirar da cadeia! E nesse mesmo dia, foi forçado a alistar-se nos Comandos. Ou aquilo, ou cadeia e na certa por muitos e muitos anos! Os 18 anos não serviriam de redução de pena, e o facto de ser filho de uma trapaça amorosa não saia da cabeça dos pais adoptivos…






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Agora é que a vida tinha dado uma volta para o pior. Não receberia subsídio de desemprego, mas se a vida já tinha mudado um pouco, agora mudaria ainda mais. Acabavam-se as viagens ao estrangeiro. Acabavam-se os almoços regados a vinho alentejano nos restaurantes mais famosos da cidade. Mesmo sendo coveiro, tinha mantido as aparências. Agora era impossível. A única coisa que nunca se tinha modificado era a sua libido. Era um engatatão de primeira, conseguia levar qualquer mulher para a cama.

Acendeu um cigarro. Aspirou o fumo acre, que lhe amarelava os dentes e o bigode, acariciou a barriga que já se ia tornando mais proeminente, e de repente estacou. O telefone tocava, o velho telefone que já lá se encontrava quando se tinha mudado. Não sabia quem lhe poderia estar a ligar.

Mas aquela manhã igual a qualquer outra ia levar uma volta tremenda, uma volta

que poderia decidir o destino do país... e talvez do mundo.

...




Não percam a continuação desta aventura porque nós, também não!





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